Amor de África - Parte I
Esparso e vago amor de África
como uma manhã outonal de nevoeiros calmos sobre o Tejo.
Difuso e translúcido amor de África
na sombra fugidia ao gás das travessas às três da madrugada.

Amor pálido de África num céu de andorinhas mortas
num campo branco sem malmequeres nem papoulas
Amor ténue e pálido, difuso e vago, translúcido de África
no coração murcho das multidões do Rossio olhando o placard
gente murcha e exausta, cansada e torturada
cansada e torturada para o amor.

(Quatro pulsações febris de um corpo só
oh África do Nilo e do Zaire oh África do Zambeze e do Níger
quem em ti está pensando de coração em África?
África dos rios velhos e ruínas ossificadas de Zimbabwé
China das muralhas de crisântemo e sangue
Malaias e Indonésias com encruzilhadas de sonho e febre
Indochina da virilidade com abraços tricolores de fraternité e palavras de balas
quem em vós está pensando de coração em África, nas Chinas e Malaias, Indonésias e Indochinas de sonhos crispados?)

São sempre notícias de longe (terras exóticas meu avô andou lá veja a mala de cânfora conheceu o Gungunhana)
são sempre notícias de longe bafejando corações murchos às cinco horas da tarde no largo do Rossio.
Esparso e vago amor de África pelas calçadas da cidade.

Vago amor de África pelas nove horas da manhã, comigo sentado num eléctrico amarelo
deslizando nos carris ainda orvalhados do sonho e da ilusão
com pernas roliças de sopeiras a caminho da praça
e as vozes acordadas roucas dos embarcadiços encalhados
e as gralhas gentis e palradoras da agulha e linha
comigo sentado no eléctrico amarelo com carris de sonho
e uma mulher velha com o desejo-de-lugar nos olhos encovados
e eu deslizando com os sonhos dos outros e acordando para os olhos velhos da mulher
levantando-me e ela sentando-se no comentário para a do lado
há rapazes pretos muito gentis, muito gentis, muito gentis
e eu indiferente e vago com a vaguidade do amor daquela mulher esquecida do tempo como um papiro
embalado pelo eléctrico amarelo de sonho e pelos carris
das gralhas mimosas e palradoras;
(ah não haver milho às mãos-cheias para os bichos gulosos de vida destes corpos penugentos
nem os barcos de papel da infância seguros contra todos os riscos no Lloyd’s da nossa imaginação
para os homens do mar feitos agora gaivotas cinzentas em terra).
Esparso e vago amor de África pelas calçadas da cidade.

Vago também as nove e trinta da manhã na tabacaria tolhida de espanto
à esquina do prédio de oito andares
onde em dois brasidos se queimam olhos fosforescentes de pantera
e há uma mão felina estendendo na ponta das unhas recurvadas
pelo desejo e pela ambição o maço de Paris
uma mão de veludo e unhas de sangue
metendo conversas secretas e arrepios na espinha
solicitando encontros respeitáveis com carteiras concretas
casacos cio Alaska e jóias de Kimberley.

Francisco José Tenreiro, poeta de são tomé e princepe
Autor:
Francisco José Tenreiro
Nome Completo:
Francisco José Tenreiro
Género Literário:
Poeta
Profissão:
Geógrafo
Nascimento:
20 de janeiro de 1921, São Tomé, São Tomé e Príncipe
Falecimento:
31 de dezembro de 1963, Lisboa, Portugal