1

É preciso que aconteça numa manhã sem sol e sem
recurso para o cansaço que o corpo traz da noite.
É preciso também valorizar o medo. Dizer assim, talvez:
- a guerra continua, dormi a noite toda e a guerra continua.

Uma luz como a de outubro surgirá em julho.
Atingirá as formas como se as formas a desconhecessem,
como se até aí fossem rocha apenas sobre as areias que há
[no mar profundo
e não soubessem nada do seu próprio corpo
e a luz as dissolvesse numa excessiva sobre-exposição.
Vem declarar, num instante, a anulação completa das
[idades.
A progressão da luz e a regressão da forma.
A dissolvência, em suma.

Os contornos estão perdidos para sempre. Agora é a memória,
memória, a madrugada, a opacidade imaculada do silêncio.

Esta era a profecia. O retrato fiel do fim do mundo.

2

É já apenas só uma memória.
Falo da luz que irradiava dos cadáveres
e das águas fermentadas que os continham.
Havia um frasco, enorme.
Crescera desmedido para albergar compassos de uma guerra longe:
s ecos todos dos obuses todos
os glaciares do medo nas arenas do norte.

À volta uma manhã que era já quente, a luz rente de
outubro, a iminência da dissolução.
E havia o frasco, um frasco enorme, prismático e aberto,
retendo o amarelo de uma água velha,
matéria a mais propícia à gestação dos limos e das algas.
À tona alguns cadáveres, o ventre exposto, inchado e branco,
alguns também retidos na verdura
e os olhos sobretudo, provocação soberba da miséria.
Quando isto aconteceu eu era muito novo
e sem recursos para iludir surpresas.
Mais tarde atravessei cidades mortas
Não as temi.
Morte ou memória? Como entendê-lo agora?

3

Os pequenos dragões puseram a gravata, ajustaram ao
corpo a couraça do orgulho, consultaram num instante a
cartilha da paz, e vieram para a rua comandar a guerra.
A ordem de batalha está completa: o cancro explodirá
Pela madrugada. Nem as franjas da noite estarão
bastante longe. A flor do eco, que abre nos peitos um
lugar para a sede, oscilará suspensa no silêncio,
assegurando o gangrenar da aurora.

Os pequenos dragões esbracejam na penumbra. Estendem
o braço para afagar o ferro e aferem, um a um, os
potentes instrumentos da confiança. Os pequenos dragões
estão sobretudo ansiosos. Exibem, varonis, a ereção da
voz e arremetem-na de encontro à multidão para
fecundar-lhe o embrião da raiva.

A aranha é instalada nos baldios da fé. Assenta o peso
sobre a carne incauta e crava as garras, para se afirmar,
na oferta abdominal das hostes seduzidas. O ferro
arranca vivas de prazer. Entre dois crânios grandes um
pequeno, de forma a que não haja qualquer falha e se
edifique um piso só de crânios. O aparelho
vive de equilíbrios.

Os pequenos dragões não podem mais. É tempo já de
acometer a noite. As condições propícias estão criadas: há
já um cio para umedecer o medo. Sejamos fêmeas para a
ereção da armada. Do som haverá luz e das brechas da
carne escorrerão manhãs.

O sangue, hoje, é dos outros.

4

Acordas ansioso por saber das grinaldas que o sangue
abriu na noite. Enfrentas a manhã nua e devassa
como a parede branca a que se rasga a forma
de um cartaz antigo. Caíram os tapumes da confiança
e eis presente, como nunca adversa, a geografia
cada vez mais tensa.

vês a língua de areias servida de outra luz.
A memória sumiu-se, cristalizou nos ecos.
A gestação do medo arruinou as horas.

Ensaias o andar antes sabido. Apenas expões a pele
sem que o contorno do teu velho corpo
revele indícios do que lhe vai por dentro. Reinventas no
mundo a implantação do vulto, lavado agora das razões
seguras. Estar vivo e acometer a claridade
implica a vocação de afeiçoar o corpo à praça imposta.
Há uma maneira apenas de enfrentar o frio.
É transportar, por dentro, o mesmo frio. Não fere, a
decisão, muito para além das decisões alheias.

5

Nada mudou para quem delega a glória.
Nada é tão grave que nos impeça os corpos.
Estamos aqui, sentados, sabendo que o conforto
é só cá dentro e a casa é cheia de alegria e festa
e a carne é fresca porque viva e alheia
à carne longe, retalhada e fria.
Somos de fato, em nosso apuro e com o nosso dote,
uma versão apenas indecisa
do nó que nos habita bem no centro.
Rapazes, raparigas,
que cada um empunhe a flor oculta
para inseri-la entre pernadas jovens.

A morte longe enquanto nos arder
à flor da boca
esta atenção pela florações dos outros.

Ruy Duarte de Carvalho poeta de angola
Autor:
Ruy Duarte de Carvalho
Nome Completo:
Ruy Alberto Duarte Gomes de Carvalho
Género Literário:
Poesia, romance, conto
Profissão:
Escritor
Nascimento:
22 de abril de 1941, Santarém, Lisboa
Falecimento:
12 de agosto de 2010, Swakopmund, Namíbia, Angola