Magníficos.
como os jactos que aguardam no aeroporto o iminente sinal da partida,
seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes,
o subsolo da imagem pressentida.

Perfurantes como as brocas dos mineiros,
pontas de aço-vanádio
que o cubro alcançam sem perder o gume,
um fogo o olhar o queima, um mar invade-o,
um lume feito de água, água de lume.
Súbito, seus grandes olhos imensos descolam e levantam voa.
Ei-los que sobem.

Seu movimento é como se apenas as coisas deles se afastassem,
é como se move o tempo, sem agravo nem estrago,
como boiam as folhas na dormência do lago,
como bate o coração do homem enterrado no chão.

Na estática subida a que se entregam
são o próprio silêncio em que navegam,
são a curva do espaço,
a quarta dimensão.

Cá em baixo,
onde as superfícies se avaliam
multiplicando pi por érre dois,
um formigueiro de bois
desenha na planície coloridos talhões.
Cumprem-se as sementeiras.
As cores são as bandeiras;
os regos, os limites das nações.

Um rabiar de células,
Cultura de bactérias num capacete de aço,
ziguezagueiam, obstinadas como libélulas,
num charco de sargaço.

Entretanto,
seus grandes olhos imensos olham, e olhando,
no desígnio frontal que não hesita nem disfarça,
com linhas de olhos vão bordando a talagarça.

Sento-me à secretária,
preparo-a, limpo-a, esfrego-a
na aflita busca do mais puro espaço,
e com o esquadro e a régua,
o lápis e o compasso,
construo os olhos d'Ela.

Deliberada e escrupulosamente
ergue-se a construção de arquitectura mansa,
quase cinicamente,
como quem premedita uma vingança.

(Aliás
o engano, a ilusão,
a mentira, a falsidade,
o perjúrio, a invenção,
tudo, em Amor, é verdade.)
Eis os mais lindos olhos deste mundo.
O Amor os fez.

Proas de galeões de velas pandas,
meninas a correr que chegam às varandas
olhando o mundo pela primeira vez.

Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero
na plácida inocência,
um miligrama de cianeto, morte sem desespero,
acicate da humana permanência.

Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca
de plátano, uns veios
de clorofila,
mancha irisada
em redor da pupila,
óleo vertido no asfalto da estrada.

Encosto o rosto às mãos, e embevecido
contemplo a construção de linhas,
e finjo-me esquecido
como se não soubesse que são minhas.

Como se não soubesse
comovo-me e entrego-me no sorriso total,
Construo o meu real
conforme me apetece.

António Gedeão, poeta português
Autor:
António Gedeão (Rómulo de Carvalho)
Nome Completo:
Rómulo Vasco da Gama de Carvalho
Género Literário:
Poeta
Nascimento:
24 de novembro de 1906, Lisboa, Portugal
Falecimento:
19 de fevereiro de 1997, Lisboa, Portugal