A quitanda.
Muito sol
e a quitandeira à sombra
da mulemba.
- Laranja, minha senhora,
laranjinha boa!

A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.
A quitandeira
que vende fruta
vende-se.

- Minha senhora
laranja, laranjinha boa!
Compra laranja doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.
Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa
que não abriu
princípio impelido ainda para um início.
Laranja, minha senhora!

Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu já não choro.
E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.

Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
à alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.
Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado.
Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.
Agora vendo-me eu própria.
- Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
- sangue.
Talvez vendendo-me
eu me possua.
- Compra laranjas!

Agostinho Neto
Autor:
Agostinho Neto
Nome Completo:
António Agostinho Neto
Profissão:
Médico, escritor e politico
Nascimento:
17 de setembro de 1922, Kaxicane, região de Icolo e Bengo, Angola
Falecimento:
10 de setembro de 1979, Moscovo, Rússia